Lectio Divina[1]

Por Leandro Francisco da Silva[2]

Queridos irmãos e irmãs, a Palavra de Deus é, em última análise, a comunicação de si mesmo, uma comunicação viva e sempre nova. Que nos alcança a todos e a todos revive. Com a sua Palavra Deus se revela a si mesmo, sua pessoa, suas mais profundas e intimas características. A Palavra de Deus narra a história de muitos acontecimentos, de muitas manifestações de Deus, na vida e na história de seu povo. Quando proferida, a Palavra de Deus transforma-se, portanto, em acontecimento, um bonito acontecimento que, à luz da fé, é experienciado na relação entre Deus e a pessoa humana. Uma narrativa de acontecimentos já irrompidos no tempo, porém, nunca superados, pois nos alcança ainda hoje, eis a beleza da Palavra de Deus! As letras da bíblia, antes de serem palavra, são história […] testemunhos históricos das ações de Deus. Um Deus se que faz próximo, que se desnuda, que se revela. Abraão, Moisés, Maria e os apóstolos, todos visitados por Deus, surpreendidos por sua presença e por seu amor. Um amor tão grande que não se limita a si mesmo, derrama-se e inunda toda a humanidade, chega até nós e nos torna homens e mulheres “mergulhados de Deus”, abastecidos de Deus, imersos no seu amor, um amor que brota de um coração aberto, ferido, porém, pulsante e cheio de amor, que da cruz nos alcança a todos. Somente quando mergulhados pelo amor de Deus é que podemos afirma-lo como Filho de Deus, como expressão maior e mais plena do amor e da revelação de Deus (Lc 23,47), n’Ele a Palavra de Deus foi pronunciada em plenitude e, ao mesmo tempo, realizou-se a grande intervenção de Deus na história da humanidade. A Palavra de Deus realiza o que significa e transforma a situação de seus ouvintes. A comunidade reunida na ação litúrgica é o lugar em que a Palavra de Deus se atualiza e se torna eficaz. Neste sentido, a lectio divina, isto é, a leitura orante da bíblia, constitui um fundamental instrumento de leitura, oração, contemplação e mudança de vida. É um caminho proposto pela igreja e que privilegia a atualização da Palavra de Deus na vida e na história individual de cada pessoa. É um caminho seguro de adequação da Palavra a vida vivida. É uma vida de confronto entre o ideal (a Palavra de Deus) e o real (meus limites e fragilidades). É preciso uma adequação, isto é, uma ponte entre uma e outra. Para a execução desta tarefa, tida difícil, quando não impossível, contamos com a graça de Deus que nos vem em auxilio e nos ajuda a nos assemelharmos, num caminho progressivo de fé, a Cristo, de quem nos é, caminho e meta de nossa caminhada de fé.

A atividade proposta para esta terça feira, penúltima deste mês de setembro, mês da bíblia, é a lectio divina, a leitura orante da bíblia. Para tanto usaremos o texto bíblico de Tg 1, 16-25. Antes, porém, permitam-me fazer um breve comentário do mesmo.

Logo no versículo 16 o autor sagrado pede que os membros daquela comunidade considerem os dons como vindos do alto, isto é, de Deus. Parece-me, irmãos, que assim deve ser também com a Palavra de Deus (sobretudo Ela!). Pois sem este dado de fé, sem esta experiência de Deus, cairíamos facilmente na humana pretensão de querer “ter Deus”. Cairíamos na humana pretensão de teorizar demais a Palavra de Deus, creio não ser este seu intuito, sua pretensão. A Palavra de Deus é antes de tudo um livro de fé, e somente os homens e mulheres de fé, podem entende-lo, pois, iluminados pela fé, dom e graça de Deus a todos aqueles que o procuram de coração sincero. Por ela fomos criados, como primícias de sua criação. O logos é a palavra que gera, que dá vida. No prologo do Evangelho de João, o autor sagrado põe em evidencia, numa analogia àquele logos do qual fomos criados desde das origens – faça-se […] (gênesis 1ss) ao logos referido no Novo Testamento, isto é, Jesus Cristo, verbo eterno do Pai, do qual afirmamos ser Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro (Credo niceno-constinopolitano). Por ele fomos perdoados de toda culpa, regenerados pelo seu sangue derramado na cruz, por sua morte fomos vivificados. Se de uma árvore, no gênesis, nos veio a morte, de igual modo, por um novo e singular madeiro – o da cruz nos veio, em Jesus a vida do mundo. A Palavra, o logos de Deus é, neste sentido, a criadora da vida, somente n’Ele encontramos vida e vida em plenitude. Isto exige de nós uma atitude de escuta “Que cada um esteja mais pronta para ouvir, mas lento para falar e encolerizar-se (Tg 1,19). Inseridos numa sociedade cada vez mais barulhenta, a tarefa de silenciar-se constitui uma tarefa árdua e difícil, contudo, necessária. Se não silenciarmos na vida de oração corremos o risco de “manusear Deus”, de pretendermos que ele nos faça o que queremos. Invertemos a lógica! Na vida de oração, numa autêntica vida de oração, é Deus quem nos fala, nós somos seus ouvintes, homens e mulheres dispostos a ouvi-lo e a cumprir seu mandato, seus mandamentos. Sem a escuta necessária corremos o risco de nos “confundirmos a voz de Deus”, seguindo outros pastores que não o pastor por excelência, Jesus Cristo. Uma verdadeira vida de oração, cujo princípio e guia é Deus, desemboca na vida prática, alcança e transforma as nossas ações e relações, torna-nos homens e mulheres mais dóceis a prática do Evangelho, ao cumprimento dos mandamentos, transformando a nós e as outras demais estruturas da sociedade. Sem essa docilidade corremos o risco de uma vida de oração descontextualizada da vida, carente de sentido e por isso infértil e sem vida. Corremos o risco de vida de oração limitada, sem frutos, sem um significativo testemunho evangélico e de fé. Por isso Tiago ao escrever aos seus escreve, diz “Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1,22). A vida de oração tem elementos que não são desconectados uns dos outros. É um processo dialógico. Rezar é, em última análise, põe-se em atitude de escuta com uma disposição reta e interior em viver o que fora ouvido no diálogo com Deus. Sem esta unidade corremos o perigoso risco de viver uma vida de oração intimista – Eu e Deus, somente – ou de vivermos uma vida prática, de assistência aos pobres e marginalizados, até por vezes com uma boa e reta intenção, mas sem o evangélico sentido de caridade, que encontra na opção preferencial de Jesus pelos pobres e vulneráveis seu ponto de apoio – Sem este apoio cairíamos no “assistencialismo terapêutico” que ao invés de sanar a pobreza, cria uma outra, a pobreza e a “infertilidade” espirituais.

Tendo sido introduzidos ao tema passaremos agora ao nosso momento prático da lectio divina. A leitura orante da bíblia é composta de quatro partes principais, a saber: leitura, meditação, oração e contemplação. A primeira diz respeito a leitura do texto bíblico. O que exige uma atenta escuta. É uma interpretação mais objetiva do texto, pois, parte dos dados históricos e interpretativos do texto. Isso ajuda a contextualizar o texto bíblico. A meditação, ao contrário, parte de uma interpretação mais subjetiva. Enquanto a pergunta central daquela é o que diz o texto? A pergunta central desta é o que diz o texto para mim? Como fruto da meditação, nasce o terceiro elemento da lectio divina, a oração. Ela é uma resposta nossa ao Senhor, à sua Palavra. O último elemento da leitura orante da bíblia é o da contemplação. Com ela permitimos que a ação de Deus supere a nossa humana vontade. Como resposta à oração, através de seu Espírito, aprendemos de Deus a graça da conformação total aos seus sentimentos. Com a contemplação nos colocamos na cena bíblica, tornamo-nos um dos personagens inseridos na página evangélica. Boa lectio divina para todos!

Pistas para a reflexão

  1. O que diz a Palavra de Deus que nos foi proclamada?
  2. A partir da leitura feita, o que nos diz a Palavra de Deus? (Confronto da Palavra ouvida com a vida vivida)
  3. Tem tido frequentes encontros com a Palavra de Deus. O que a Palavra de Deus tem me instigado a fazer?
  4. Tenho vivido com criaturas de Deus, que dóceis à sua Palavra, a ela respondemos?
  5. Qual a minha postura diante da Palavra de Deus – a teorizamos (ouvimos) ou ao contrário, a vivemos?
  6. Qual tem sido o nível de vivência da Palavra na sua vida?
  7. Tendo lido, contextualizado, rezado a Palavra, diante da cena bíblica proposta, qual minha função?

[1] Lectio divina junto ao OVISA, no dia 19 de setembro, no oratório São Luiz-Lorena-SP

[2] É Salesiano de Dom Bosco da Inspetoria Salesiana do Nordeste. Mora atualmente em Lorena-SP

E-mail: leandrofsdb@yahoo.com.br 

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